Nesta pintura, Galiano reimagina a figura de Medusa não como mera vítima ou monstro derrotado, mas como uma presença poderosa e triunfante.

A composição centra-se no rosto de Medusa em primeiro plano, emergindo de um fundo escuro indistinto. Os cabelos em forma de serpentes contorcem-se em torno de sua cabeça, esboçando movimentos sinuosos que enquadram o rosto da protagonista. Os olhos de Medusa encaram diretamente o espectador – um olhar fixo e hipnótico, pintado com brilho vítreo e intensidade quase sobrenatural. A expressão facial combina fúria contida e altivez, os lábios num misto de desafio e dor.

As mãos, em gesto contido, surgem tingidas de um verde escuro, oxidado — como se fossem feitas de bronze envelhecido pelo tempo e pela maldição. Este detalhe não é casual: ecoa a descrição mais antiga das Górgonas na Teogonia de Hesíodo, onde se dizia que Medusa tinha mãos de bronze e asas de ouro. Ao recuperar esse traço arcaico, Galiano dá forma à matéria do mito e deixa que o metal da antiguidade se revele na carne da figura.

Em torno da figura, esbatidas na penumbra, entrevêem-se silhuetas de estátuas de pedra: antigos guerreiros e vítimas petrificados pelo seu olhar letal, compondo um cenário de silencioso testemunho ao alcance devastador da Górgona. A luz incide sobre o rosto e o colo de Medusa, revelando matizes esverdeados e pálidos na pele – tonalidades que lembram a frieza do mármore ou o mofo da pedra – enquanto as sombras profundas reforçam o contraste dramático. Alguns detalhes cromáticos, como reflexos avermelhados em certas serpentes ou nos olhos, sugerem sutilmente o sangue e a violência associados ao mito, sem porém recorrer a grafismo explícito.

Óleo sobre tela 90x60cm 2023

“O Triunfo da Medusa” propõe uma inversão intrigante do mito clássico de Perseu. Aqui, é Medusa quem parece vitoriosa – o título indica uma leitura simbólica onde o poder antes temido da Górgona é reivindicado como força central da obra. A pintura convida-nos a encarar Medusa de frente (tal como as suas vítimas), criando um jogo metalinguístico: o espectador torna-se simultaneamente intruso no covil e potencial próxima estátua. Galiano explora assim o tema do olhar transformador – a ideia de que a imagem (e a arte) pode “petrificar” ou impactar profundamente quem a contempla.

Do ponto de vista mitológico, Medusa era tradicionalmente vista como um monstro a ser derrotado, mas leituras contemporâneas ressignificam-na como símbolo da raiva justificada e do poder feminino diante da injustiça. De facto, a capacidade mítica de transformar homens em pedra, bem como a expressão aterradora de Medusa nas diversas representações artísticas, tornaram-se sinônimo da fúria feminina na cultura atual. Galiano parece alinhar-se com essa visão: em vez de retratar a Medusa como vencida, Galiano devolve-lhe o poder — ela ergue-se, inteira, senhora do seu olhar e do seu lugar.

O olhar penetrante da figura – iluminado e central – sugere não a vilania, mas a indignação de alguém que sofreu uma maldição injusta e agora reivindica o próprio destino. A obra, nesse sentido, dialoga com a noção de Medusa como ícone de resistência: “não mais encarada como um monstro, mas como uma mulher poderosa, em busca de reparação pelo que sofreu”. Em termos estilísticos, a pintura evoca a famosa Medusa de Caravaggio (1597) pelo enquadramento frontal da cabeça e pelo contraste violento de luz e sombra, mas onde Caravaggio retrata o momento da decapitação (com horror e agonia), Galiano opta por um momento posterior hipotético, quase contemplativo, em que Medusa surge viva e triunfante sobre aqueles que tentou destruir. Essa escolha confere à peça um tom subversivo e miticamente estimulante: o triunfo aqui não é do herói tradicional, mas da própria criatura outrora demonizada.

Em última análise, “O Triunfo da Medusa” oferece uma reflexão sobre empoderamento e reinterpretação: transforma o mito numa alegoria da vingança do oprimido e do poder inerente do feminino ferido, ao mesmo tempo em que exibe a maestria técnica de Galiano na pintura figurativa de inspiração clássica.

Preço: sob consulta (obra disponível; contactar para aquisição – despesas de envio não incluídas).